sábado, 23 de abril de 2011

A Casa Dos Guardanapos de Pano


Um andar. Um andar só. Não, mentira minha, um andar e meio, contando aquela escada vazada e sem corrimão que levava pro quarto do tio mais novo. Aquele cômodo sempre foi o mais misterioso pra mim, tinha um certo algo de quarto proibido no ar.



A entrada era pela garagem. Logo em frente, um móvel com um espelho de  formato estranho e uma gaveta. Em frente ao espelho, uma mesa grande, eu acho, uma mesa onde tenho uma foto sentada no dia do casamento da minha madrinha. À direita da porta, os janelões que levavam ao pátio, ao grande pátio e, no pátio, o cachorro. 
O cachorro era um  dálmata com o rosto todo branco. Diz meu tio que isso é uma virtude em dálmatas, que manchas nos olhos são como defeitos para a raça. Não sei, só sei que não era um cachorro com olho de pirata. Diz meu tio, também, que era um tipo especial, bisneto de um dálmata campeão de uma criadora lá do Rio de Janeiro que diz que tinha criado um tipo especial de "dálmatas quadrados". Diz que até em livro tem o nome da família do cachorro. Quanta coisa... e eu que achava que cachorros eram só cachorros. Não lembro muito bem dos detalhes. Conta minha mãe que ele se levava para passear e que, ao voltar, batia com o rabo 3 vezes na porta.  



Um dia, o Tony sumiu. Minha família acha que ele foi roubado, sequestro canino, mas tudo isso eu não sei. Tudo que sei é do sentimento que eu tinha pelo cachorro. Ele era o meu melhor amigo na casa, meu fiel escudeiro contra os leões que moravam embaixo da mesa de jantar e meu comparsa em todas as minhas tentativas frustradas de pular o muro que dividia o pátio com, acho, a área de serviço. Lembro-me de brincar de cavalgar no Tony, lembro que ele era gigante perto da minha pequeneza infantil, isso é o que mais me lembro. E creio que me lembro que nos divertíamos muito, ele e eu, a brincar ao lado do grande banco de madeira que ficava à sombra do quarto do tio mais novo. O que mais me lembro do Tony é esse sentimento de amor velho que ainda guardo, assim, quase que perdido, no fundo do baú mais antigo do meu peito.  



À frente da porta, onde ficavam o espelho estranho e a mesa na foto, um hall que levava a sala de TV e a sala de jantar. Lembro-me pouco da sala de TV, a disposição dos móveis, o sofá que fazia frente a lareira e a cadeira do avô, o lugar nobre da sala, fazendo frente a TV. Lembro-me pouco da Sala de TV, mas lembro-me perfeitamente da sensação que tinha quando brincava de caminhar no encosto do sofá; lembro-me direitinho da visão dos meus pés e do esforço para manter o equilíbrio; lembro-me da adrenalina de pensar que o sofá poderia virar e da graça que achava do medo que a avó tinha de que eu caísse.
Na sala de jantar, um leão. Ou o que eu adorava fantasiar que fosse um leão. Uma mesa grande, 6 lugares, de madeira escura e cadeiras que eu precisava escalar para conseguir sentar e, embaixo da mesa, o leão. Quatro gigantes patas de leão sustentavam a mesa: e as minhas fantasias. 



Cruzando a sala de jantar se chegava a copa, era uma casa do tempo em que as casas ainda tinham copa e, passada a copa, entrava-se na cozinha, que era fina e comprida. Sobre a copa não tenho muito a dizer, só que ela tinha gosto de pão com manteiga e mel. Pão com manteiga e mel que a Teresa fazia. Tereza era a negra que tinha sido criada pela minha bisa enquanto minha avó, menina de sociedade, tinha sido criada em um internato. Depois de velha, Tereza tinha ajudado a minha vó a criar seus filhos e, depois de ainda mais velha, estava ajudando a filha da minha avó a me criar; a cozinha era interessante, bem fina e bem comprida tinha um monte de fogões que nem me lembro bem. O que me lembro bem da cozinha era que tinha uns canos, canos compridos e de comprimentos diferentes na parede a direita da porta, parecia uma miniatura daqueles órgãos de igreja. Eram as campainhas. Cada cômodo tinha a sua campainha.



*    *    *



E tudo na casa me era absolutamente natural. Fantasticamente natural. A mesa com patas de leão, o cesto de ovos em forma de galinha na copa, o órgão na cozinha que servia como campainha. O avô. A avó.



Passou-se o tempo. Primeiro, foi-se embora a casa: grande, imponente e acolhedora, no alto daquele morro que me doía as pernas de subir; mais tarde, já em um apartamento, também alto e em um morro, veio o computador. Computador melhor que o da minha casa. O computador melhor que eu já tinha visto. O computador que ficava no escritório do avô. E, depois, foi-se embora o avô. Na sequência, foi-se embora o apartamento e, com ele, a biblioteca do avô.



Idos a casa, o avô, o apartamento, a biblioteca, ficou-me a avó. Me pareço muito com a avó. Dela, “aprendi a herdar” o paladar. Se da negra, que depois de ainda mais velha tinha ajudado a filha da avó a me criar, aprendi o gosto por pão com manteiga e mel, da avó, guardei o gosto por pêras e sopas. Gosto de sopas independente da temperatura, mesmo no verão, gosto de sopas.



E tudo na casa me era absolutamente natural. Fantasticamente natural. Levou-me bastante tempo: foi-se embora a casa, a negra, o avô, o apartamento, a biblioteca e o computador. E foi preciso que ficasse só a avó, as pêras e as sopas, para que todo o universo que conheci dentro das paredes daquela casa me parecesse menos natural. Era fantástica, eu mal sabia. 



* * *



Notas sobre o avô:  



Como me dói não ter convivido mais com o avô. Olhando assim, para a foto que a minha mãe mandou fazer dele para toda a família, sinto uma ternura tão grande e, ao mesmo tempo, um grande pesar. Um pesar de não tê-lo comigo, um pesar de não ter suas opiniões para venerar ou, ainda, aquela aura de reverência que tinha o cruzar da porta para o gabinete.



Nunca mais vi gabinetes. Hoje os prédios têm paredes de gesso e chamam de escritório aquele pequeno vão que sobra entre o lavabo e o corredor, onde mal cabe um laptop. O do avô não, o do avô era um cômodo inteiro, ainda maior que qualquer outro cômodo da casa. O avô nunca era só o avô: era um avô; um par de óculos daqueles de armações grossas dos anos 60; uma biblioteca; uma poltrona e um cálice de vinho no braço da poltrona; um cigarro  e, depois da década de 50, uma televisão.



Lembro-me da TV retrô da sala de estar e das histórias que minha mãe contava sobre como cada filho tinha um dia seu da semana para escolher o que ver na TV. Conta ela que o dia dela era o sábado, mas, aos sábados, o avô estava em casa, logo, ela não tinha dia da TV. Já nos anos 90 meu avô comprou uma TV muito moderna: tinha duas caixas de som retangulares que saiam das laterais da tela, assim como duas orelhas. Ainda está aqui a TV, na casa dos guardanapos de pano versão 3.0, o apartamento da avó. Lembro-me exatamente do dia em que a TV chegou, o primeiro dia em que vimos a TV, uma das raras vezes em que o avô permitiu que meu pai entrasse no gabinete. Ficamos nós três lá, embasbacados com o brinquedo novo do avô. A TV e o avô passavam os dias a conversar. Como ele teria gostado de conhecer McLuhan. 



Se ao meu pai não eram dadas muitas vindas ao santuário-biblioteca-gabinete do avô, a mim a história era diferente: cheia da inocência infantil dos idos dos 6 anos, desconsiderava as regras veladas e entrava no gabinete a qualquer momento, de qualquer maneira, correndo a pular e colocar os pés nas poltronas de couro do avô. Para o formalismo silencioso que pairava do no ar da residência: heresia. Para mim, a risada gostosa do avô divertindo-se com o descumprir de suas próprias regras. Coisa boa ainda lembrar do riso do avô. Acho que consigo reproduzir. Acho que meu riso se parece com o dele.



O avô era Doutor. Professor Doutor, como nos divertimos ao lembrar no último natal. Virou até nome de praça. Era jurista, e a referência em ciência política no estado, mas, se me perguntassem, meu avô era a versão gaúcha de Vinícius de Morais. Acho que são os óculos e o nariz dele que me fazem pensar assim. Minha mãe conta histórias de que, na praia, ele batucava sambas em caixinhas de fósforos. Ora, se isso não é digno de um garoto de Ipanema?  



Lembro-me de um diálogo lá pelos 8 anos quando, morrendo de medo de decepcionar o avô, liguei para dizer que não queria mais ser advogada. Estava a me desculpar, meu mais novo sonho era ser diplomata. O avô, claro, achou muito graça. Também achou graça quando mais nova, lá pelos 6 anos, me informaram solenemente que ele iria fazer uma cirurgia no coração e eu, ajoelhada a sua frente na sala estranha que ficava em frente a sala de jantar, não hesitei: sugeri que ele aproveitasse para fazer uma plástica e tirar um pouco da barriga que já ia bem grande. Ele, claro, caiu em riso e me disse que achava essa uma boa idéia. Acho que ele achava graça de mim, acho que eu o divertia.



A última lembrança que tenho do avô é do ano de 99, exato um ano depois da sua morte. Minha mãe sentada no chão, escorada no armário do nosso escritório, chorando a ausência dele. Não me lembro de ter chorado a sua ausência, mas isso não quer dizer que não a sinta. Em cada curva do caminho queria tê-lo comigo, a achar graça dos meus dilemas.
Vô, sinto falta da tua ternura. 



* * *



Notas sobre a avó:  



A avó tem cabelos curtos, usa-os claros, quase loiros. Hoje, pintados. Tem sempre as unhas feitas, usa-as claras, sempre discretas. É uma pessoa curiosa a avó, sempre vistosa, ao mesmo tempo, muito discreta.

Uma vez fui com minha irmã ao cinema, era um filme sobre a rainha da Inglaterra, mas bem que poderia ser um filme sobre a minha avó. Elas usam a mesma sineta, um pequeno sino sempre ao alcance das mãos, para chamar os empregados da casa. Imagine só, minha avó e a rainha da Inglaterra dividem uma sineta! Que mundo curioso. Ao sair do cinema, encantadas, comentamos: concluímos que éramos netas da rainha da Inglaterra.



Essa é a avó. Clara, nobre, filha de aristocratas do passado, ela e os guardanapos de pano. Mas, assim como as pêras e as sopas, de uma simplicidade encantadora. É doce, é suave, é apaixonante. 



* * *



Enquanto escrevo, a avó, já com cabelos brancos disfarçados pela tinta, dá aula. Fala de ciência e de filosofia a uma turma em uma faculdade. A avó é psicóloga e filósofa desde o tempo em que, aqui por estes trópicos, as mulheres nem trabalhavam, nem pensavam, nem ensinavam fora das paredes de suas casas. Mas a avó já pensava, já bem longe de casa, a avó pensava.



E esse é o fantástico por trás do normal. O fantástico que me levou anos para descobrir. Imaginem vocês que, tendo nascida neta da rainha da Inglaterra que dá aulas de filosofia e do meu Vinícius de Moraes particular, com acesso livre ao seu ao gabinete, eu, por tanto tempo, só me ative ao leões que se escondiam embaixo da mesa de jantar. 


* * *

Com todo o amor do mundo, este texto é dedicado a Izar e Leônidas Xausa, a avó e o avô. 

Dedico-o também aos Xausa e ao prazer de todos os Natais em família. 

À minha mãe, Maria Regina Xausa e à minha irmã, Vitória Xausa Bosak, por serem tudo. 

E, é claro, à amável, talentosa e generosa Clarissa Motta Nunes - www.clarissamn.art.br - que me presenteou com a escolha do meu texto como tema para sua exposição.

Com muito amor a todos, 

Bibiana Xausa Bosak